segunda-feira, 16 de junho de 2014

"O que quer que você sinta, guarde para você"

Eu nunca levei um tiro. Nem nunca ouvi um tiroteio de perto. Eu nunca fui torturada, nem sequer perdi parentes em bombardeios. Mas muitos dos personagens do romance A Cicatriz de David, sim. O livro foi reeditado e se chama agora Manhãs em Jenin (mas em português só se encontra com o nome antigo). A voz dos palestinos nunca ouvidos é a voz de Amal, terceira geração de refugiados da invasão da Palestina pelos judeus, que a chamaram de Israel. O sonho do "retorno" é um sonho comum a todos nos campos de refugiados e não poderia ser diferente em Jenin, onde Amal e Huda (sua melhor amiga) crescem diante de guerra e violência. Amal é filha de Dalia e Hasan, e tem mais dois irmãos - Yousef e Ismael (que é sequestrado aos seis meses de vida por um soldado judeu). Passam-se 63 anos durante todo o livro, que descreve a geração anterior e a seguinte a de Amal. 
É difícil resumir e descrever uma história com tantas perdas e mortes. No mundo dos leitores, isso é spoiler. No mundo da guerra, isso é comum, apesar de toda a dor e sofrimento. Dor e sofrimento. Perdas. Mortes. Muito disso você encontra em A Cicatriz de David. Mas também muito amor recolhido por causa do medo, muito amor magoado por causa da guerra e muito amor enlouquecido por causa das mortes.
A frase do título desse texto é dita pela mãe de Amal, Dalia, quando as duas vão ajudar uma mulher num parto. E essa frase ecoa em tantos momentos diferentes através das memórias da nossa narradora. 
Quando assistimos os jornais e vemos tantas notícias sobre bombardeios e conflitos no Oriente Médio, muitas vezes não entendemos o que provocou isso tudo e porque é tão difícil terminar. A Cicatriz de David é uma breve aula de história, escrita por uma mulher americana de origem palestina, que nos faz entender os conceitos de nação, identidade e território. A Cicatriz de David nos faz entender o sofrimento do povo árabe. Susan Abalhawa (a autora) nos dá uma lição sobre a tradicional cultura árabe, alguns de seus costumes, suas poesias e (repito) sua dor e sofrimento. Aprendi mais algumas coisas do vocabulário árabe, fiquei de olhinhos brilhando quando Yehya (avô de Amal) ia tocar o seu nye(uma flauta arábe), quando ouvia que as mulheres iriam dançar um dabke ou quando faziam o zaghareet (famoso "lililili" da dança do ventre).
É difícil terminar de lê-lo e não sair abalado com tanta miséria e destruição (que ainda não acabou). É difícil não chorar as perdas de Amal e pensar que essas não chegam a ser nem um centésimo de tudo que foi causado nesses 70 anos de invasão.


"- O mundo não pode permitir que isso se prolongue por mais tempo - disse eu a Huda.
- O mundo? - repetiu Huda, sarcástica, retórica, profundamente amarga, uma Huda diferente da que eu conhecia - E desde quando o mundo se importa conosco? Você ficou longe daqui muito tempo, Amal. Durma. Você fala como uma amerikyya - Dito isso, ela cobriu o nariz com um pedaço de pano e fechou os olhos" (página 416)

PS: Comprei o livro porque custava apenas R$9,90 nas Americanasporque precisava de alguma coisa pra ler durante a viagem de volta de Curitiba. Fiquei sonhando com o filme maravilhoso que ele poderia se tornar...

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