Eu nunca levei um tiro. Nem nunca ouvi um tiroteio de perto. Eu nunca fui torturada, nem sequer perdi parentes em bombardeios. Mas muitos dos personagens do romance A Cicatriz de David, sim. O livro foi reeditado e se chama agora Manhãs em Jenin (mas em português só se encontra com o nome antigo). A voz dos palestinos nunca ouvidos é a voz de Amal, terceira geração de refugiados da invasão da Palestina pelos judeus, que a chamaram de Israel. O sonho do "retorno" é um sonho comum a todos nos campos de refugiados e não poderia ser diferente em Jenin, onde Amal e Huda (sua melhor amiga) crescem diante de guerra e violência. Amal é filha de Dalia e Hasan, e tem mais dois irmãos - Yousef e Ismael (que é sequestrado aos seis meses de vida por um soldado judeu). Passam-se 63 anos durante todo o livro, que descreve a geração anterior e a seguinte a de Amal.
É difícil resumir e descrever uma história com tantas perdas e mortes. No mundo dos leitores, isso é spoiler. No mundo da guerra, isso é comum, apesar de toda a dor e sofrimento. Dor e sofrimento. Perdas. Mortes. Muito disso você encontra em A Cicatriz de David. Mas também muito amor recolhido por causa do medo, muito amor magoado por causa da guerra e muito amor enlouquecido por causa das mortes.
A frase do título desse texto é dita pela mãe de Amal, Dalia, quando as duas vão ajudar uma mulher num parto. E essa frase ecoa em tantos momentos diferentes através das memórias da nossa narradora.
Quando assistimos os jornais e vemos tantas notícias sobre bombardeios e conflitos no Oriente Médio, muitas vezes não entendemos o que provocou isso tudo e porque é tão difícil terminar. A Cicatriz de David é uma breve aula de história, escrita por uma mulher americana de origem palestina, que nos faz entender os conceitos de nação, identidade e território. A Cicatriz de David nos faz entender o sofrimento do povo árabe. Susan Abalhawa (a autora) nos dá uma lição sobre a tradicional cultura árabe, alguns de seus costumes, suas poesias e (repito) sua dor e sofrimento. Aprendi mais algumas coisas do vocabulário árabe, fiquei de olhinhos brilhando quando Yehya (avô de Amal) ia tocar o seu nye(uma flauta arábe), quando ouvia que as mulheres iriam dançar um dabke ou quando faziam o zaghareet (famoso "lililili" da dança do ventre).
É difícil terminar de lê-lo e não sair abalado com tanta miséria e destruição (que ainda não acabou). É difícil não chorar as perdas de Amal e pensar que essas não chegam a ser nem um centésimo de tudo que foi causado nesses 70 anos de invasão.
"- O mundo não pode permitir que isso se prolongue por mais tempo - disse eu a Huda.
- O mundo? - repetiu Huda, sarcástica, retórica, profundamente amarga, uma Huda diferente da que eu conhecia - E desde quando o mundo se importa conosco? Você ficou longe daqui muito tempo, Amal. Durma. Você fala como uma amerikyya - Dito isso, ela cobriu o nariz com um pedaço de pano e fechou os olhos" (página 416)
PS: Comprei o livro porque custava apenas R$9,90 nas Americanasporque precisava de alguma coisa pra ler durante a viagem de volta de Curitiba. Fiquei sonhando com o filme maravilhoso que ele poderia se tornar...